A disseminação da cultura informática

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Introdução

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Não é muito difícil prever o que será o futuro, quando a História olhar para trás e estudar os anos do século XX, caracterizados historicamente, entre outras coisas, como tempos em que se produziu uma aceleração tecnológica e um avanço nas comunicações sem precedentes. Não é fácil encontrar situações históricas análogas à expansão tecnológica que se assistiu nestes últimos cinquenta anos do século. Após as revoluções do ferro, da eletricidade, do petróleo, da química, veio a revolução apoiada na eletrônica e no desenvolvimento dos computadores. A partir dos anos setenta iniciou-se a integração em grande escala da televisão, telecomunicação e informática, em um processo que tende a configurar redes informativas integradas, com uma matriz de comunicação baseada na informação digital, com grande capacidade de veicular dados, fotos, gráficos, palavras, sons, imagens, difundidos em vários meios impressos e audiovisuais. Pode-se até dizer que, em certo sentido, as mídias estão sendo suprimidas, pois tudo está se tornando eletrônico.

A integração dos meios de comunicação gera também uma progressiva fusão das atividades intelectuais e industriais do campo da informação. Jornalistas das redações dos grandes jornais e agências de informação, artistas, comunidade estudantil, pesquisadores trabalham diante de uma tela de computador. Em algumas sociedades, como a norte-americana por exemplo, quase 50% da população economicamente ativa está dedicada a atividades industriais, comerciais, culturais, sociais e informacionais relacionadas com coleta, tratamento e disseminação da informação. Há um aumento da eficiência informacional a cada dia, e se barateiam cada vez mais os custos tecnológicos. Não esquecendo que o computador, diferentemente das outras máquinas (que manipulam, transformam ou transportam matéria e energia) manipula, transforma e transporta um elemento muito mais limpo e menos consumidor de energia e matéria prima. Abre-se portanto uma porta para um crescimento da informação praticamente ilimitado.

Já que se está tratando principalmente nesta dissertação sobre a evolução das idéias e conceitos que levaram ao surgimento e desenvolvimento da Ciência da Computação, pode-se falar agora de um supra-conceito maior, consequência que a Computação ajudou a catalisar: o surgimento da Sociedade da Informação. Sem querer adentrar no tema, merecedor de um trabalho exclusivo e com implicações históricas, antropológicas, sociológicas e até psicológicas que fogem ao escopo desse trabalho, duas considerações serão feitas: o problema do excesso de informação e o perigo do empobrecimento que pode ser causado pelo uso indevido do computador.

 


O domínio e o controle das informações

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Existe no mundo da pintura uma expressão que se refere ao acúmulo de cores que acaba por não permitir uma clara distinção do objeto: infopoluição. Esta possibilidade começa a fazer-se realidade no âmbito da Sociedade da Informação. A informação está expandida no mundo de hoje, resultado da explosão de fontes que incluem as agências comerciais de notícias, os sistemas comerciais de satélites transmissores de imagens, a World Wide Web, etc.

A superabundância de informação tende a mudar a natureza de cada mensagem concreta. Às vezes a maneira mais prática de não informar é dar uma enxurrada de informações. Pode-se chegar até a privar de significado, ou tornar insignificante, a própria mensagem. A informação converte-se, nesta perspectiva, em simples ruído de fundo. Isto já ocorre especialmente com os informes publicitários.

É uma acumulação de dados não só pela densidade de informações bem como pela sucessão rápida com que chega. Se no passado o problema era o de acesso e coleta, agora está sendo o da seleção e avaliação. A possibilidade de recolher, processar, difundir e recuperar informação de maneira quase instantânea implica numa certa desvalorização da notícia. É necessário que se enfatize cada vez mais a análise da informação e que se encorajem as inovações técnicas nesse campo. Já surgem os grandes sistemas de manipulação de dados, gigantescos depósitos de dados com seus 'Data Minds', softwares que usando técnicas de IA e trazem, por mecanismos de inferência, a informação desejada ou a possível informação desejada.

As possíveis reações ante esse fenômeno da 'poluição informativa' ocorreram em três direções68. Uma primeira via seria a seleção da informação, sem redundâncias nem repetições, como se mencionou algumas linhas acima. A outra seria a redução da informação, acomodando-a em função de interesses específicos e especializados do público e a terceira via é a fuga da informação. A fuga da informação seria o florescimento de ideologias simplificadoras, a semeadura do irracional, o voluntarismo irreflexivo, o empobrecimento das relações sociais e o desenvolvimento do mais passivo consumismo. É uma hipótese reducionista, somente esboçada em determinados nichos sociais. Uma futura linha de fuga seria a exploração através da venda e compra da informação, das mensagens informativas, a um determinado custo (como avaliar?), orientando-se a radiotelevisão ao volume de informação e tipo de informação que deseja o assinante.

 


O equilíbrio entre o toque humano e a tecnologia

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As citações e considerações deste capítulo estão baseadas em uma palestra do prof. Dr. Valdemar Setzer, do Instituto de Matemática e Estatística da USP, em 03-IV-96, no Museu de Arte Contemporânea da USP.

Como citado anteriormente, o computador também exerce aquelas três ações das demais máquinas, isto é, transformar, armazenar e transportar, mas não mais matéria ou energia, e sim dados. Dados podem ser considerados abstrações do mundo real, não fáceis de se estabelecer muitas vezes. Como traduzir em símbolos uma personalidade, ou um sentimento? Para serem processados por um computador eles terão que ser tratados como símbolos formais (que já é um empobrecimento), por exemplo, introduzindo-se uma gradação numérica: tal intervalo entre números x e y representará uma gradação da intensidade de um determinado sentimento, o que é um empobrecimento ainda maior. Conforme o prof. Setzer:

"É importante fazer aqui uma distinção necessária entre o armazenamento de textos, imagens e som, que são pura e simplesmente reproduzidos, talvez com alguma edição da sua forma (por exemplo, alinhamento de parágrafos, saliência de contrastes em fotos, eliminação de ruídos), e o processamento de dados. Este último é o tratamento que se dá aos dados, transformando seu conteúdo, isto é, a semântica que se associa aos mesmos. Por exemplo, traduzir textos de uma língua para outra, extrair características de estilo de autores em pesquisas de lingüística computacional, gerar desenhos a partir de programas como no conhecido caso dos fractais, etc.".

"De onde provem o empobrecimento da informação? Do fato de que os dados não têm nada a ver com a realidade, sendo na verdade representações simbólicas de pensamentos abstratos formais, lógico-simbólicos, e como tal eles não precisam ter consistência física. Aliás, é justamente a imponderabilidade dos dados e sua alienação em relação ao físico que permitiu que os computadores fossem construídos cada vez menores, o que não pode acontecer com todas as outras máquinas. De fato, estas podem ser caracterizadas como máquinas concretas, ao passo que os computadores são máquinas matemáticas, e portanto abstratas, virtuais. Assim, todo processamento de dados deve utilizar-se exclusivamente de pensamentos formais expressos sob a forma de um programa de computador. Esse processamento lógico-simbólico, por ser extremamente restrito e unilateral, acaba por restringir enormemente o espaço de tratamento das informações, que devem ser expressas sob forma de dados; daí o empobrecimento das informações que são representadas por esses dados. Note-se que essa restrição é até de natureza matemática: não é possível colocar no computador as noções de infinito e de contínuo, apenas aproximações das mesmas".

"A caracterização do computador como máquina abstrata fica mais clara ao notar-se que todas as linguagens de programação são estritamente formais, isto é, passíveis de serem descritas matematicamente. O próprio funcionamento lógico do computador pode ser descrito por formulações lógico-matemáticas. As outras máquinas não têm essa característica, pois atuam diretamente na matéria (aí incluída a energia), e esta escapa a uma descrição matemática".

"Mas não são só as linguagens de programação que são formais. Qualquer linguagem de comandos, mesmo icônica, de um software qualquer, também é matematicamente formal. Por exemplo, qualquer comando de um editor de textos produz uma ação do computador que é uma função matemática sobre o texto sendo trabalhado ou sobre o estado do computador. Portanto, para se programar ou usar um computador, é necessário formular os pensamentos dentro de um espaço estritamente abstrato, matemático, apesar de aparentemente não ser o tradicional, pois os símbolos e as funções são em grande parte diferentes. Programar ou usar um computador são funções estritamente matemáticas, como fazer cálculos ou provar teoremas. Assim, a programação ou uso de um computador exigem o mesmo grau de consciência e abstração que a atividade matemática. Isso não se passa com todas as outras máquinas, que exigem uma certa coordenação motora automática, semiconsciente (por exemplo, só se aprende a andar de bicicleta quando não é mais necessário pensar sobre os movimentos e o equilíbrio)".

Portanto, o uso do computador deve ser acompanhado de um novo tipo de educação, seja no âmbito familiar ou das escolas, universidades ou empresas, que aponte para uma abertura maior do entendimento humano. E quem dá esse saber vital, que faz com que um homem se sinta interiomente livre porque tem respostas às questões da vida, e tenha uma visão mais ampla da realidade? É a cultura, a literatura, a filosofia, a história, etc., ou seja, as humanidades ou artes liberais como antes eram chamadas algumas ciências humanas. Nas ciências técnicas e para os profissionais da Computação isto é mais premente. O maior problema que a especialização das ciências técnicas trouxe foi essa perda do sentido de conjunto. Continuando com as considerações da citada palestra:

"Um empobrecimento que também pode dar-se em outro sentido que é o uso da computação na arte. Há um elemento informal e intuitivo na arte que leva a dizer que na criação artística deve haver um elemento inconsciente, que nunca poderá ser conceituado totalmente. Já a criação científica deve poder ser expressa por meio de pensamentos claros, universais e não-temporais, isto é, independentes da particular interpretação do observador, talvez até certo ponto (dependendo da área) formais, matemáticos. Imagine-se uma descrição do Altar de Isenheim através dos seus pixels e seus comprimentos de onda: ele perderia totalmente o senso estético e não produziria mais a reação interior provocada no observador pelas cores, formas e motivos, isto é, não teria o efeito terapêutico para o qual foi criado por Grünewald".

"O elemento emocional foi realçado por Freud, quando afirmou em sua 'Introdução à Psicanálise,' Aula 23, e no ensaio 'Além do Princípio do Prazer,' que a arte é emoção ou expressão subconsciente e não imitação ou comunicação (dentro de seu típico raciocínio unilateral da teoria da sublimação da emoção e do desejo através da arte). Comparando-se com a arte como comunicação de uma realidade espiritual, de Kandinsky, vê-se bem o contraste entre materialismo e espiritualismo; neste pode haver algo superior a ser comunicado".

"Apesar de que a idéia expressa em um objeto de arte seja de conteúdo objetivo, a sensação e emoção que ela desperta é subjetiva. Por exemplo, ouça-se uma terça maior seguida de uma menor, ou uma sétima seguida de uma oitava. Estamos seguros que qualquer pessoa terá sensações diferentes em cada caso, que ficam claras pelo contraste entre cada intervalo e o seguinte. Mas provavelmente quase todas as pessoas dirão que a terça menor é 'mais triste' e a sétima produz uma tensão aliviada pela oitava. Cada um sente essas emoções diferentemente, mas há claramente algo universal por detrás delas, como as sensações que temos do amarelo limão (alegre, radiante, abrindo-se) e do azul da Prússia (triste, introspectivo, fechando-se) ".

"É necessário considerar também uma distinção essencial entre obra artística e científica o fato da primeira dever sempre ter contextos temporais e espaciais ligados à sua criação. Como contraste, uma teoria científica não depende do tempo, desde que seja consistente e corresponda às observações, se for o caso. Um exemplo simples é o do conceito de uma circunferência, como por exemplo o lugar geométrico dos pontos eqüidistantes de um ponto. Essa definição formal não dependeu das condições de seu descobridor. Ela é impessoal e eterna. O fato de podermos captá-la com nosso pensamento levou Aristóteles a conjeturar, por um raciocínio puramente lógico, precursor de nossa maneira de pensar hodierna, e que não poderia ter ocorrido em Platão, pois este tinha sido um iniciado nos Mistérios (em A Escola de Atenas, de Rafael há uma representação da diferença entre os dois), que temos dentro de nós também algo de eterno".

"A dependência espaço-temporal da criação artística aliada ao elemento de expressão individual semiconsciente do artista faz com que haja sempre um elemento de imprevisibilidade na criação. O artista deve observar sua obra durante o processo de criação, para influir no mesmo e chegar a algo que não podia inicialmente prever. Isso pode ser um processo puramente interior, como no caso de um compositor que não precisa ouvir os sons de sua obra; no entanto, a sensação auditiva ao ouvi-la tocada nunca é a mesma que a que pode imaginar interiormente. Poder-se-ia argumentar que a pesquisa científica também tem elementos de imprevisibilidade. Isso pode ocorrer até na matemática: um teorema pode ser descoberto, e o seu autor ou outros ainda não saberem como se poderá prová-lo (um exemplo recente foi a prova do último teorema de Fermat, formulado no século XVII). Uma grande diferença reside no fato do resultado ser de um lado um conceito e de outro um objeto. Além disso, uma vez estabelecido um conceito científico, toda vez que se refizer a experiência ou a teoria correta o resultado será o mesmo (dentro das eventuais aproximações experimentais); no caso da criação artística, o objeto de arte deverá sempre mudar, pois a sua simples presença deve influenciar o criador, que terá outras inspirações na hora de repetir a criação (lembremos da frase de Freud de que simples imitação não é arte). Dá-se a esse fator o nome de dinamismo da criação artística".

"Portanto o uso do computador para fazer arte, sem considerar sua grande utilidade como banco de dados das obras artísticas, pode ser empobrecedor".

"Como instrumento passivo na criação artística, como é o caso do uso de uma ferramenta CorelDraw existe o problema do usuário fazer uso de um raciocínio formal ao utilizar os comandos do computador submetendo a criação artística a uma consciencialização e formalização e o problema da ausência do elemento inconsciente, assim como do contato físico que desperta diferentes reações, como por exemplo, no pintor com seu pincel, no pianista ao dedilhar o piano".

"Uma outra forma de usar um computador em arte é fazer um programa para gerar imagens ou sons (quem sabe, no futuro, até fazer uma escultura ou construir uma casa). Um exemplo conhecido disso são os fantásticos desenhos produzidos por funções fractais; programas para produzir desenhos com essas funções provavelmente estarão logo no mercado. Nesse caso, não há apenas a substituição de um instrumento informal por outro formal; o próprio processo de criação torna-se totalmente formal. A criação deve ser expressa de maneira estritamente matemática, como é o caso de um programa. Com isso, elimina-se totalmente o elemento inconsciente. É também eliminado o elemento individual, no sentido de qualquer pessoa poder entender totalmente como a obra foi produzida - basta examinar detalhadamente o programa. É eliminado ainda o elemento temporal e espacial ligado à criação. Em outras palavras, a atividade artística tornou-se atividade científica. A propósito, é muito importante compreender-se o que significa produzir um programa para fazer uma obra de 'arte' segundo um certo estilo. Um computador pode produzir desenhos e música que se assemelham aos de Mondrian e de J.S.Bach, mas estes tiveram que desenvolver seus estilos para poder ser depois analisados e expressos em elementos puramente formais e programados em um computador, para gerar algo que aparentemente é semelhante. Sem Bach, não haveria programas que imitam sua música. Além disso, a 'criação' do computador não exprime nenhuma idéia além da contida no estilo, desde que este seja expresso matematicamente, o que representa um empobrecimento".

Encerradas as considerações, o que se deseja chamar a atenção é a mentalidade do uso do computador sem o correspondente desenvolvimento de outros aspectos da inteligência do homem. Depois de tudo o que foi falado, seria redundante e supérfluo falar das vantagens desse instrumento de trabalho que potencializou e impulsionou o desenvolvimento das ciências em geral. Mas é bom lembrar que os computadores não inovam, não se relacionam, não são flexíveis e não sabem tomar iniciativas diante de situações não pré-determinadas por algoritmos internos. A imersão na informática traz o risco de se deixar de lado o cultivo ou mesmo a perda de aptidões fundamentais: leitura, reflexão, criatividade, etc. Será tarefa primordial principalmente nos estabelecimentos de ensino, onde o computador se faz cada vez mais presente, preocupar-se em dar ao lado dos conhecimentos técnicos e informáticos, uma sólida formação humanística que garanta o exercício integral da inteligência humana em seus vários âmbitos.

 

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